Órfãos do Eldorado

by - outubro 28, 2015

Eu queria dizer pra alguém que o filme era muito bom. Saí da sala de cinema cansada, mas era um cansaço físico do dia inteiro, longo e intenso que começou de manhã cedo em São Paulo e termina agora no Rio. São 01:22.

Eu disse ao taxista que o filme era magnífico. Cogitei a ideia de falar com o diretor, mas o burburinho da exibição valeria mais do que dar atenção a alguém com quem pouco se conversou e deixei para depois. Ali não ia sair muita coisa além do extasiado seu filme é muito bom, parabéns! Mas falei tanto com o taxista que no final, ele já queria assistir e perguntou quando seria a estreia.

Eu não conhecia o livro. Sem relação alguma com o momento, tinha acabado o Dois Irmãos e estava lendo o Relato de um certo Oriente. As referências de Milton Hatoum são comuns às suas obras e parecem ter uma levada autobiográfica. Os livros têm um ar denso e pesado, da umidade amazônica. O filme também.


Hoje é outro dia. Deixei o Relato descansando para ler Órfãos do Eldorado, que originou o filme. Conforme o diretor, Guilherme Coelho já havia dito, um é bem diferente do outro. Esta é a história de Arminto (Daniel de Oliveira), Florita (Dira Paes) e Dinaura (Mariana Rios). Florita vive com o Amando, pai de Arminto, e pede que este retorne à sua terra natal. Ele chega com a notícia de que seu pai está doente e decide encontrá-lo. Ao se readaptar a cidade, conhece Dinaura, uma mulher misteriosa e faz de sua busca uma obsessão.

Estive em Belém ano passado. Passei quatro dias e foi tempo suficiente para me declarar pela cidade. Belém é sincera. Ela não esconde seus vários problemas e lhe permite ver além, entranhada no início da região amazônica com o clima quente e úmido, que nos deixa mais sensíveis a uma natureza quase obscena de tão linda, abundante, morena. Belém é uma delícia para comer e possivelmente tem um dos melhores povos do país, se for possível falar assim. Órfãos é rodado parcialmente lá e carrega todos os elementos que representam o que há de místico e diverso na cidade, mas a percebemos sutilmente, talvez apenas pelo Ver-o-Peso, uma das referências turísticas, feira/mercado cartão postal que vende um compacto de tudo o que só se encontra por lá.


A ideia parece ter sido essa: desenvolver uma história que fugisse dos eixos principais do país, mas que fosse também nosso e representasse com a cultura local um extrato do todo. Se o livro traz um drama que percorre décadas, no filme percebemos em detalhes que falamos de um presente elástico. O objetivo era eliminar a marcação do tempo cronológico, reforçando o tempo da memória em elipses sutis. Assim chega o tecnobrega, as cachaças, os bares ribeirinhos, as comidas, os rios imensos e sem horizonte como o Atlântico, a vida em palafitas. O próprio relacionamento de Arminto e Florita ultrapassa o que podem ser dias, meses, anos e seus encontros reafirmam uma história que teve início na adolescência e é retomado com este mesmo furor em cenas belíssimas e sensuais, como um amor proibido e guardado há muito tempo.

Dira Paes, paraense e grande pelo talento, consegue de alguma forma incompreensível ser ainda maior, como uma mulher que está sempre à espera e parece ter o domínio do tempo, este tempo dentro da história, entre os personagens. Daniel de Oliveira é outro ator, que a cada personagem confirma uma transformação intensa e diferente. Sua pele brilha e sai do tom claro, como se o banho daqueles rios o dominasse por dentro. Parece ser isso mesmo, a encarnação de algum local, alguém em busca de um reencontro, numa perseguição teimosa e insana, preso entre duas mulheres. O trabalho com os atores construiu personagens que se comunicam no olhar, neles há a densidade de cada um e uma sedução voraz que os prende – nem preciso falar das aparições de Mariana Rios como uma mulher de sonho, por sua distância e beleza. Talvez seja isso, um filme de olhares.

Milton Hatoum não se reconhece como um escritor de realismo fantástico, mas seus textos são carregados de referências a mitos e lendas locais que relembram o estilo – talvez pela cultura amazônica e a mescla entre memória, sonho e realidade. E é esse o tom de convivência com o sobrenatural – ou mítico, religioso, lendário, quase sinônimos aqui – que adiciona particularidades tanto em seus livros quanto no filme. Assim, a montagem constrói com o roteiro a busca por um amor que se abre em mistérios, caminhos que percorremos sem prever um final – e sem conhecer o livro é ainda mais surpreendente. A construção do clímax, na alternância de sequências entre os protagonistas nos deixa tensos até o desfecho – é como desvendar um segredo em uma carta, vamos lendo ou desdobrando a folha sem querer abri-la totalmente, mas até chegar neste instante já fomos fisgados lá atrás e ficamos entre a vontade de rasgar e ler tudo de vez ou aguentar a agonia ou o prazer de cada palavra.


O livro traz a região amazônica para perto do resto do país, a caracterizando como um espaço além do exótico, quando reafirma suas distinções com os outros territórios nacionais. O filme extrapola esse objetivo com a força que só o audiovisual tem – estourando as cores locais, trazendo o dourado do sol na pele dos atores, mesclando sombras das casas vazias com uma floresta densa como o clima do filme, ao tempo que cresce com o reflexo dos rios escuros. A criação deste clima de memória, fantasia e realidade é uma parceria entre a diretora de arte Marghê Pennacchi e o diretor de fotografia Adrian Teijido, já conhecidos de outros grandes trabalhos.

Quando saía de outra sessão nacional no Festivaldo Rio, ouvi um casal que dizia que o filme era tão bom que não parecia brasileiro. Sem enveredar pelo passado cinematográfico, é nítido como a frase pesada hoje não faz sentido. O bom cinema brasileiro é como este filme, que traz um pouco da cultura de um lugar que pouca gente conhece, de uma região que pouca gente visita, é um dos lugares mais ricos do país e mundo, e ainda o faz bem, miscigenando gêneros, nos deixando sentir na pele aquele calor úmido dos relacionamentos e do local, nos fazendo querer conhecer mais, feliz de ter participado dos curtos minutos que retratam o Brasil na carne. Tive uma sensação parecida quando assisti ao Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009, Marcelo Gomes e Karim Ainouz). É uma descoberta que gera orgulho por ser nosso ou simplesmente por ter sido feito aqui. Saber que o mesmo Marcelo Gomes colaborou neste filme só reforça a parceria que deve ser o cinema e o sucesso como resultado. Que esta primeira ficção de Guilherme Coelho o leve adiante e nos traga mais filmes assim.

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2 Comentários

  1. Só tenho Aplausos pelo comentário tão rico , e fascinante.
    Tenho vontade de ir agora assistir esse filme.Não pare de escrever nunca porque seus comentários dão clareza e "você um leitor que está lendo" o comentário percebe exatamente o que vai encontrar; e com certeza vai gostar.
    Muito sucesso!!!
    beijos de Mamis

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  2. Muito boa crítica aumentou a vontade de ver o filme.Parabéns.

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