Eu queria dizer pra alguém que o
filme era muito bom. Saí da sala de cinema cansada, mas era um cansaço físico
do dia inteiro, longo e intenso que começou de manhã cedo em São Paulo e
termina agora no Rio. São 01:22.
Eu disse ao taxista que o filme
era magnífico. Cogitei a ideia de falar com o diretor, mas o burburinho da
exibição valeria mais do que dar atenção a alguém com quem pouco se conversou e
deixei para depois. Ali não ia sair muita coisa além do extasiado seu filme é muito
bom, parabéns! Mas falei tanto com o taxista que no final, ele já queria
assistir e perguntou quando seria a estreia.
Eu não conhecia o livro. Sem
relação alguma com o momento, tinha acabado o Dois Irmãos e estava lendo o Relato
de um certo Oriente. As referências de Milton Hatoum são comuns às suas
obras e parecem ter uma levada autobiográfica. Os livros têm um ar denso e
pesado, da umidade amazônica. O filme também.
Hoje é outro dia. Deixei o Relato descansando para ler Órfãos do Eldorado, que originou o filme. Conforme o diretor, Guilherme Coelho já havia dito, um é bem diferente do outro. Esta é a história de Arminto (Daniel de Oliveira), Florita (Dira Paes) e Dinaura (Mariana Rios). Florita vive com o Amando, pai de Arminto, e pede que este retorne à sua terra natal. Ele chega com a notícia de que seu pai está doente e decide encontrá-lo. Ao se readaptar a cidade, conhece Dinaura, uma mulher misteriosa e faz de sua busca uma obsessão.
Estive em Belém ano passado.
Passei quatro dias e foi tempo suficiente para me declarar pela cidade. Belém é
sincera. Ela não esconde seus vários problemas e lhe permite ver além,
entranhada no início da região amazônica com o clima quente e úmido, que nos
deixa mais sensíveis a uma natureza quase obscena de tão linda, abundante,
morena. Belém é uma delícia para comer e possivelmente tem um dos melhores
povos do país, se for possível falar assim. Órfãos
é rodado parcialmente lá e carrega todos os elementos que representam o que há
de místico e diverso na cidade, mas a percebemos sutilmente, talvez apenas pelo
Ver-o-Peso, uma das referências turísticas, feira/mercado cartão postal que
vende um compacto de tudo o que só se encontra por lá.
A ideia parece ter sido essa: desenvolver uma história que fugisse dos eixos principais do país, mas que fosse também nosso e representasse com a cultura local um extrato do todo. Se o livro traz um drama que percorre décadas, no filme percebemos em detalhes que falamos de um presente elástico. O objetivo era eliminar a marcação do tempo cronológico, reforçando o tempo da memória em elipses sutis. Assim chega o tecnobrega, as cachaças, os bares ribeirinhos, as comidas, os rios imensos e sem horizonte como o Atlântico, a vida em palafitas. O próprio relacionamento de Arminto e Florita ultrapassa o que podem ser dias, meses, anos e seus encontros reafirmam uma história que teve início na adolescência e é retomado com este mesmo furor em cenas belíssimas e sensuais, como um amor proibido e guardado há muito tempo.
Dira Paes, paraense e grande pelo talento, consegue de alguma forma incompreensível ser ainda maior, como uma mulher que está sempre à espera e parece ter o domínio do tempo, este tempo dentro da história, entre os personagens. Daniel de Oliveira é outro ator, que a cada personagem confirma uma transformação intensa e diferente. Sua pele brilha e sai do tom claro, como se o banho daqueles rios o dominasse por dentro. Parece ser isso mesmo, a encarnação de algum local, alguém em busca de um reencontro, numa perseguição teimosa e insana, preso entre duas mulheres. O trabalho com os atores construiu personagens que se comunicam no olhar, neles há a densidade de cada um e uma sedução voraz que os prende – nem preciso falar das aparições de Mariana Rios como uma mulher de sonho, por sua distância e beleza. Talvez seja isso, um filme de olhares.
Milton Hatoum não se reconhece
como um escritor de realismo fantástico, mas seus textos são carregados de
referências a mitos e lendas locais que relembram o estilo – talvez pela
cultura amazônica e a mescla entre memória, sonho e realidade. E é esse o tom de convivência com o sobrenatural – ou mítico, religioso, lendário, quase sinônimos aqui – que adiciona particularidades tanto em seus livros quanto no filme. Assim, a
montagem constrói com o roteiro a busca por um amor que se abre em mistérios,
caminhos que percorremos sem prever um final – e sem conhecer o livro é ainda
mais surpreendente. A construção do clímax, na alternância de sequências entre
os protagonistas nos deixa tensos até o desfecho – é como desvendar um segredo
em uma carta, vamos lendo ou desdobrando a folha sem querer abri-la totalmente,
mas até chegar neste instante já fomos fisgados lá atrás e ficamos entre a
vontade de rasgar e ler tudo de vez ou aguentar a agonia ou o prazer de
cada palavra.
O livro traz a região amazônica para perto do resto do país, a caracterizando como um espaço além do exótico, quando reafirma suas distinções com os outros territórios nacionais. O filme extrapola esse objetivo com a força que só o audiovisual tem – estourando as cores locais, trazendo o dourado do sol na pele dos atores, mesclando sombras das casas vazias com uma floresta densa como o clima do filme, ao tempo que cresce com o reflexo dos rios escuros. A criação deste clima de memória, fantasia e realidade é uma parceria entre a diretora de arte Marghê Pennacchi e o diretor de fotografia Adrian Teijido, já conhecidos de outros grandes trabalhos.
Quando saía de outra sessão nacional no Festivaldo Rio, ouvi um casal que dizia que o filme era tão bom que não parecia
brasileiro. Sem enveredar pelo passado cinematográfico, é nítido como a frase
pesada hoje não faz sentido. O bom cinema brasileiro é como este filme, que
traz um pouco da cultura de um lugar que pouca gente conhece, de uma região que
pouca gente visita, é um dos lugares mais ricos do país e mundo, e ainda o faz
bem, miscigenando gêneros, nos deixando sentir na pele aquele calor úmido dos relacionamentos e do local, nos fazendo
querer conhecer mais, feliz de ter participado dos curtos minutos que retratam o
Brasil na carne. Tive uma sensação parecida quando assisti ao Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009,
Marcelo Gomes e Karim Ainouz). É uma descoberta que gera orgulho por ser nosso
ou simplesmente por ter sido feito aqui. Saber que o mesmo Marcelo Gomes
colaborou neste filme só reforça a parceria que deve ser o cinema e o sucesso
como resultado. Que esta primeira ficção de Guilherme Coelho o leve adiante e
nos traga mais filmes assim.
2 Comentários
Só tenho Aplausos pelo comentário tão rico , e fascinante.
ResponderExcluirTenho vontade de ir agora assistir esse filme.Não pare de escrever nunca porque seus comentários dão clareza e "você um leitor que está lendo" o comentário percebe exatamente o que vai encontrar; e com certeza vai gostar.
Muito sucesso!!!
beijos de Mamis
Muito boa crítica aumentou a vontade de ver o filme.Parabéns.
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